Canabidiol e as epilepsias refratárias
Publicado em 20 de março de 2023
Há mais de 50 anos, foram identificadas as proteínas (ou alvos farmacológicos) às quais os fitocanabinóides se ligam no organismo humano – o sistema endocanabinoide. Desde então, muitos estudos científicos demonstraram que os produtos derivados da Cannabis sativa têm um potencial terapêutico em diferentes condições clínicas. Embora muito ainda precise ser explorado para entendermos a melhor maneira de utilizar estes produtos, existe um número robusto de evidências que suportam sua aplicação. É o caso da utilização de canabidiol (CBD) no tratamento de epilepsias refratárias.
Mas antes de qualquer coisa, se quiser entender como o sistema endocanabinoide funciona, clique aqui. E se quiser relembrar as diferenças entre os produtos derivados de Cannabis sativa, não deixe de ler esta publicação.
O que é uma epilepsia refratária?
Epilepsia é uma doença neurológica caracterizada pela ocorrência de impulsos nervosos descoordenados em algumas regiões do cérebro (epilepsia parcial), ou em todo ele (epilepsia total). Em outras palavras, é como se a comunicação entre os neurônios perdesse o controle e entrasse em curto-circuito. Esse tipo de alteração pode levar o paciente a perder a consciência e ter convulsões, assim como pode gerar uma sobrecarga elétrica e neuroquímica que resulta em pequenas lesões cerebrais. Dessa forma, a epilepsia é uma condição clínica grave, e deve ser controlada para minimizar os danos. No entanto, alguns quadros de epilepsia não respondem bem aos medicamentos anticonvulsivantes que temos disponíveis no mercado atualmente e, por isso, são chamados de epilepsias resistentes ou refratárias.
Se o quadro já parece preocupante, considere que alguns tipos de epilepsia – como aqueles de origem genética – se manifestam já nos primeiros anos de vida, sendo chamadas de epilepsias infantis. Embora esses quadros possam regredir ao longo do desenvolvimento, chegando à cura, uma parte dos indivíduos segue a vida toda com a doença. Nesse contexto, dois tipos de epilepsias infantis de difícil tratamento são as síndromes de Dravet e de Lennox-Gastaut.
Canabidiol: uma breve história no contexto da epilepsia
Em 2018, a agência regulatória americana (Food and Drugs Administration - FDA) aprovou o uso clínico do primeiro medicamento com ingrediente ativo derivado de Cannabis sativa – o canabidiol (CBD) – para tratamento das síndromes de Lennox-Gastaut e Dravet. Esse marco foi muito importante e abriu caminho para a utilização de uma nova classe de substâncias no tratamento dessas doenças. No entanto, é preciso segurar as expectativas para que seu uso seja feito de maneira racional e embasada. 1
Os primeiros 4 estudos clínicos que avaliaram os efeitos do CBD em epilepsias refratárias foram realizados entre 1978 e 1990, reunindo no total 48 pacientes adultos. Apesar destes estudos apresentarem resultados bastante promissores, apresentavam também limitações metodológicas, como descrições incompletas ou pouco tempo de acompanhamento dos pacientes, o que limitou sua credibilidade por um bom tempo. 2–4
Nas décadas seguintes, multiplicaram-se relatos de caso e outros tipos de ensaios clínicos avaliando os efeitos do tratamento com produtos derivados de Cannabis sativa, mas estes também apresentavam suas limitações devido à grande heterogeneidade dos dados. No entanto, esse cenário mudou após a publicação de um ensaio clínico de fase 2 envolvendo 120 crianças e adolescentes com a síndrome de Dravet e que apresentavam crises convulsivas quatro ou mais vezes por mês. Neste estudo, dentre os indivíduos que receberam o tratamento com CBD, foi observada uma redução de 38,9% na frequência das convulsões e uma melhora de 62% do seu quadro clínico geral. 5
O ensaio clínico de fase 3, conduzido em seguida, analisou a resposta de mais 198 crianças e adultos (de 38 localidades diferentes ao redor do mundo) diagnosticados com a síndrome de Dravet. Novamente, foram observados excelentes resultados nos grupos tratados com CBD, reduzindo em quase 50% a frequência de convulsões. 6
Adicionalmente, os ensaios clínicos conduzidos com 396 crianças e adultos diagnosticados com a síndrome de Lennox-Gastaut demonstraram uma redução de 37,2% a 41,9% na frequência de convulsões nos grupos tratados com CBD. Por fim, também foi conduzido um estudo envolvendo 630 indivíduos (264 com síndrome de Dravet e 366 com Lennox-Gastaut) que receberam o tratamento com CBD pelo período de 1 a 3 anos. Os resultados foram robustos para grande parte dos pacientes, e os efeitos adversos mais relatados foram sonolência (25%), redução de apetite (19%), diarreia (19%) e fadiga (13%). 7,8,9,10
O canabidiol pode auxiliar no tratamento de epilepsias infantis refratárias. 4 Adaptado de shutterstock.com, 2023.
Efeito do CBD em outras doenças convulsivas
A esclerose tuberosa é outra doença genética bastante grave, na qual as crianças podem apresentar nódulos na pele, deficiências do neurodesenvolvimento, além das crises convulsivas que, em 63% dos pacientes, não respondem aos medicamentos anticonvulsivantes disponíveis. Estudos duplo-cego, randomizados e controlados por placebo estão sendo realizados, mas dados de estudos preliminares são bastante promissores ao demonstrar que após 3 meses de tratamento com CBD é observada uma redução da frequência das convulsões. 11
Um outro estudo que avaliou o efeito do tratamento com CBD em outros tipos de epilepsia refratária – deficiência de CDKL5 e síndromes de Aicardi, Doose e Dup15q –também apresentou resultados muito promissores, reduzindo em 50% as crises convulsivas. 12
Assim, o CBD pode ser uma alternativa interessante aos pacientes que antes não apresentavam resposta clínica satisfatória aos tratamentos já disponíveis. Porém, devemos tratá-lo com a mesma seriedade de outros fármacos, mantendo em mente que não será a solução mágica para qualquer doença ou mesmo para qualquer pessoa com determinada doença. Seu uso deve ser sempre racional, fundamentado e orientado por profissional capacitado.
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As informações fornecidas neste blog destinam-se ao conhecimento geral e não devem ser um substituto para a orientação de um profissional médico ou tratamento de condições médicas específicas. As informações aqui apresentadas não têm o objetivo de diagnosticar, tratar, curar ou prevenir qualquer doença.
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Referências
1. FDA Approves First Drug Comprised of an Active Ingredient Derived from Marijuana to Treat Rare, Severe Forms of Epilepsy | FDA. Accessed March 8, 2023. https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/fda-approves-first-drug-comprised-active-ingredient-derived-marijuana-treat-rare-severe-forms
2. Mechoulam R, Carlini EA. Toward drugs derived from cannabis. Naturwissenschaften. 1978;65(4):174-179. doi:10.1007/BF00450585
3. Cunha JM, Carlini EA, Pereira AE, et al. Chronic administration of cannabidiol to healthy volunteers and epileptic patients. Pharmacology. 1980;21(3):175-185. doi:10.1159/000137430
4. Morano A, Fanella M, Albini M, et al. Cannabinoids in the treatment of epilepsy: Current status and future prospects. Neuropsychiatr Dis Treat. 2020;16:381-396. doi:10.2147/NDT.S203782
5. Devinsky O, Cross JH, Laux L, et al. Trial of Cannabidiol for Drug-Resistant Seizures in the Dravet Syndrome. N Engl J Med. 2017;376(21):2011-2020. doi:10.1056/nejmoa1611618
6. Madan Cohen J, Checketts D, Dunayevich E, et al. Time to onset of cannabidiol treatment effects in Dravet syndrome: Analysis from two randomized controlled trials. Epilepsia. 2021;62(9):2218-2227. doi:10.1111/EPI.16974
7. Devinsky O, Patel AD, Cross JH, et al. Effect of Cannabidiol on Drop Seizures in the Lennox–Gastaut Syndrome. N Engl J Med. 2018;378(20):1888-1897. doi:10.1056/nejmoa1714631
8. Thiele EA, Marsh ED, French JA, et al. Cannabidiol in patients with seizures associated with Lennox-Gastaut syndrome (GWPCARE4): a randomised, double-blind, placebo-controlled phase 3 trial. Lancet. 2018;391(10125):1085-1096. doi:10.1016/S0140-6736(18)30136-3
9. Devinsky O, Nabbout R, Miller I, et al. Long-term cannabidiol treatment in patients with Dravet syndrome: An open-label extension trial. Epilepsia. 2019;60(2):294-302. doi:10.1111/epi.14628
10. Thiele E, Marsh E, Mazurkiewicz-Beldzinska M, et al. Cannabidiol in patients with Lennox-Gastaut syndrome: Interim analysis of an open-label extension study. Epilepsia. 2019;60(3):419-428. doi:10.1111/epi.14670
11. Hess EJ, Moody KA, Geffrey AL, et al. Cannabidiol as a new treatment for drug-resistant epilepsy in tuberous sclerosis complex. Epilepsia. 2016;57(10):1617-1624. doi:10.1111/EPI.13499
12. Devinsky O, Verducci C, Thiele EA, et al. Open-label use of highly purified CBD (Epidiolex®) in patients with CDKL5 deficiency disorder and Aicardi, Dup15q, and Doose syndromes. Epilepsy Behav. 2018;86:131-137. doi:10.1016/J.YEBEH.2018.05.013